sábado, 6 de setembro de 2014

TATUAGEM




Foi como se um machado cortasse o pulso. Uma dor insuportável. O braço ardia em agonia. Dilacerado. O susto a fez tremer. Foi assim que despertou de uma soneca rápida naquela tarde: aos gritos.
A tatuagem no braço direito latejava. O desenho de um coração sangrando simplesmente pulsava. O sangue não era mais pintado. Era de verdade. Sujara a cama onde Estela adormecera minutos antes.
A garota de 20 e poucos anos morava sozinha. Mantinha, ela mesma, o corte de um moicano rosa feito na cabeça. Exibia uma maquiagem pesada que se acumulava na pele mal cuidada. Para pagar as despesas, fazia bico de atendente numa lojinha de roupas góticas de um amigo gringo.
Depois de gritar de dor, tomou fôlego e acendeu a luz fraca que tentava iluminar o quarto bagunçado.
– Que porra é esta?
Disse em voz alta.
– Que merda!
Praguejou ainda mais alto. Segurou o pulso direito, olhou mais de perto, mas não conseguia acreditar no que via.
Era a primeira tatuagem que havia feito na vida: um coração "retrô" vermelho atravessado por uma seta. E agora ele sangrava de verdade!
Correu para o banheiro, enfiou o braço na pia, abriu a torneira até o fim. A água caia forte em cima do desenho. Limpava o sangue mas não revelava cortes, nem mordidas de animal, nada. Era como se o coração sangrasse por conta da seta atravessada.
Estela passou a mão, esfregou a tatuagem com a esponja que estava caída no box. Era isso mesmo: a seta fazia o coração sangrar. O desenho todo se agitava.
A tatuagem estava viva.
Enrolou a toalha no pulso e correu para o guarda-roupa.
Vestia somente uma calcinha rasgada e uma blusa velha de propaganda política há muito descartada por alguém na igreja vizinha.
Ela era assim: passava uma vez por semana na igreja, não pra rezar, mas pra ver o que havia de donativos à disposição. Foi lá que conseguira dinheiro para fazer o tratamento dos dentes que no ano passado haviam caído.
Estela tinha levado uma surra do padrasto e perdeu dois dentes da frente. O mesmo sórdido que a estuprou quando tinha apenas 13 anos. Para conseguir visitar a mãe, a moça se arriscou encarar o homem bêbado. A mãe ficara paraplégica depois de um acidente de carro, onde tentava fugir do marido violento. Por absoluta falta de opção, voltou aos braços do agressor e vive à mercê da loucura do homem.
O padre da igreja é um senhor alegre, sorridente, o chamado “gente boa”. Sempre tem uma palavra de conforto para Estela. “Minha estrela”. É assim que o padre Mércio chama a garota punk cheia de piercings e tatuagens. E não se importa quando Estela "renova" o guarda-roupa com as doações.
Na ansiedade que estava, Estela pegou um vestido qualquer, pelo meio da sala, mesmo antes de chegar aos cabides minguados onde pendurava as roupas velhas. Trocou de roupa e saiu correndo de casa. De pés descalços, com o pulso amarrado na toalha. Ia em direção ao padre Mércio quando novamente sentiu uma chaga se abrindo. Dessa vez no pescoço.
Estela tinha um sol tatuado no pescoço. Que agora pegava fogo. Queimava a pele da garota. Ela gritou e voltou para casa, não conseguia andar de tanta dor. Voou para dentro do chuveiro e a água que caia em seu corpo amenizava a dor.
Não demorou muito e logo sentiu uma pontada no pulmão. Uma lança atravessava suas costelas. A espada de São Jorge lhe tirava o fôlego rapidamente. Estela tinha um dragão e o santo tatuados nas costas.
Sem aguentar o golpe, Estela caiu. No chão, sentindo a lança atravessada nas costas, gritou em agonia. Ninguém ouvia.
Foi então que, de uma das pernas dela, duas cobras começaram a rastejar pela pele. Subindo em direção ao seu rosto. Ela tinha duas serpentes tatuadas na perna.
Estela gritou mais uma vez mas já estava quase sem ar.
A noite chegou.
A porta da frente da casa estava aberta. Na pressa de chegar ao chuveiro, esquecera de trancar. E assim permaneceu até o outro dia.
Na manhã seguinte, um vizinho curioso achou estranho a porta escancarada e se atreveu a entrar para ver se estava tudo certo.
Encontrou Estela no chão da cozinha. Sem vida, com uma faca na mão. FIM

*TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO BLOG "BAR DO ESCRITOR"


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